Sossegar

Sossegar

O que eu mais queria neste mundo era sossegar. Eis um verbo que é preciso redimir. Sossegar não é descansar, nem traz felicidade, nem se assemelha, senão superficialmente, à paz ou à tranquilidade. Não quero acalmar-me, ou serenar, ou assentar. O sossego é um estado de bonança.
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O sossego é um estado de excepção, em que a alma vem ao encontro do corpo. Pode sossegar-se em momentos de grande agitação, de um acesso de amor em que esse amor parece lucidez. É este o sossego com que sonho – uma presença consciente de verdade no que se sente – oposto à parança estúpida, queda e adormecida, falsa, aquém da alerta. Não gosto do sossego como alivio ou interrupção. Nem gosto da maneira como se usa o verbo descansar, que deveria significar repousar (recuperar forças) em vez de sossegar, como por exemplo : “ainda bem que me avisaste, assim fico mais descansada”.
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Não é o que diz a minha Mão que me sossega – é a minha Mãe, não as palavras. Não é ela estar aqui ao pé de mim, é saber que ela lá está.
No nosso tempo as pessoas querem o sossego menor das sopas e do descanso. Serem “deixadas” de alguma forma ou de outra “eu quero é que me deixem em paz”. Querem fugir. Querem ir para o campo. Meditar. Descobrir o eu interior. Mas a solidão e o silêncio não sossegam. Para isso mais vale tomar um Lexotan.
Só os outros nos podem sossegar mesmo no meio da vida, em plena acção, se pode, e vale a pena, estar sossegado. O “eu” interior é uma algazarra de desassossego.
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Não me saem da cabeça os instantes, poucos, em que me senti sossegar – e foi sempre graças a outra pessoa, vista ou lida, conhecida ou desconhecida, viva ou morta, menina ou crescida, sábia ou maluca, próxima ou longínqua, mas sempre presente. Mais presente do que próprio. Eu próprio, por defeito, talvez, não consigo lá chegar. Nunca encontrei o sossego nos outros – foram sempre os outros que me sossegaram. E quase nunca deliberadamente.
Lembro-me, em particular, dum momento, que obviamente não vou contar, mas que consistiu apenas em olhar para alguém e sentir que tudo nela me era querido, conhecido e familiar.
Não há no mundo paisagem como o rosto de uma pessoa amada, sobretudo quando está agitado, a rir-se ou a zangar-se, desprevenido, apanhado nos nossos olhos como se estivesse dentro deles já. Sentir essa mistura de perdição e de proximidade é verdadeiramente sossegar.
Não são as mentiras, por muito boas que sossegam. Só a verdade. Às vezes sossega ouvir “odeio-te” em vez de amo-te!”, so “odeio-te” for dito com amor e verdade, e “amo-te” com preguiça, por hábito ou expressamente para nos sossegar.
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O que mais queria na vida era sossegar. Não há diferença entre correr atrás das estrelas e ficar na cama a apascentar. O desassossego em que vivemos deve-se, pelo menos em parte, à nossa incompreensão, do que é, na pura verdade, sossegar, e à cobardia e ausência de vontade de tentar alcançá-la, entragando-nos nas mãos de quem nos pode ajudar.
Que ao menos seja esta a causa do nosso desassossego, porque tudo o que mais queremos ou pensamos querer, ao pé do puro sossego, não é possível – e se calhae nem sequer é possível.

MEC