CARTA DE ORFEU


"A brevidade: por vezes a mais longa das linhas do tempo, cruzando-se com o desejo de permanência que sustenta a sua ilusão. Logo, porém, a realidade nos impõe a sua regra. O que é transforma-se no que foi, com a melancolia que arrasta o sentimento da passagem, como se o rio pudesse parar para sempre no instante em que a felicidade parece suspender o seu curso. Avançamos, então, contra essas sensações que nos trazem um esplendor de rosa, aberta ao sol do meio-dia, antes que a sombra da tarde a atinja com a sua seta obscura. Uma ferida sangra entre pétalas emurchecidas; e o ramo sugere a queda nocturna, onde uma perseguição de prazer se confunde com a inquietação da morte.
Olho-te, então, contra a perspectiva do efémero. Conto cada uma das olheiras construídas no trabalho do amor, sabendo que um vórtice de esquecimento as restituirá à insónia da madrugada. Nessa hora, quantas palavras trocaram esses amantes que o passado vestiu com o seu manto de memória… como se amanhã não chegasse, trazendo a separação que corrói a pele da alma, e prende toda a esperança a uma ilusão de saudade. Porque lhe resistes?, pergunto. Em que vazio afogarás este amor que insiste em respirar, como se não soubesses que nada o substitui? Não te enganes, como não se engana esse deus cego às concessões do presente, voando para os espaços mais inacessíveis, e levando no bater das asas o mais fundo dos abraços.
Segue esse voo com o impulso antigo; e não percas o sabor desse filtro que os nossos lábios trocaram, no mais solitário dos instantes."

Nuno Júdice

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